Todo mundo dá uma escapadinha
Vander quase não reconheceu o amigo por causa da barriga imensa, mas era definitivamente Paulo Sérgio atrás da máscara com desenho de notinhas musicais, o jeito de passar a mão pela careca não deixava dúvida. Parece maior, a careca, aliás, mais espaçosa. Será que eu também fiquei mais feio na quarentena?
– Faaaaala, meu querido, que saudade! – diz batendo de levinho o cotovelo no cotovelo do brother, já se vão quase cinco meses do último encontro.
– Tá fazendo o quê aqui pela área?
– Vim pegar um negocinho no mercado, faltou ingrediente pro macarrão. Meus sogros vão almoçar com a gente hoje, daí já viu, não pode cozinhar meia boca, diga aí.
– Mas vocês estão recebendo gente em casa, ô Vander?
– Não, claro que não. São só meus sogros.
– Seus sogros são gente, cara.
– Ah, mas aí é diferente.
– Diferente?
– Claro, pô. Não tô dando festa. É só um almoço de domingo.
– Vander! Oi, Vander! – uma voz de mulher grita feliz do outro lado da rua, salvando Vander de ter que dar explicações.
– Olha a Catarina vindo.
A mulher do amigo, animada com a perspectiva de socializar com alguém conhecido depois de tanto tempo de clausura, atravessa apressada quando o sinal fecha, e vem balançando a mão para cima, como quem dá tchau, e espremendo os olhos, como quem é atingido pelo sol. Talvez esteja sorrindo debaixo da máscara, chuta Vander.
– Faaaaala, Cata! – diz Vander, tão feliz com a troca de assunto que quase abraça Catarina.
– Bom te ver, Vandão. Como vão as coisas? Tava falando de você com o Paulo Sérgio esses dias mesmo, olha a coincidência.
– O Vander tá dando almoço público lá na vila hoje, amor, tá sabendo?
– Mentira do Pê Ésse, Catarina.
– Mentira nada. Tá recebendo os sogros prum macarrão cheio de firula, ainda por cima. Acha que rico senta de máscara à mesa, ainda mais se for pra comer ravióli de vitela?
Antes que pudesse ser salvo por Catarina de algum modo, se é que ela tinha interesse em ajudá-lo, e também antes que botasse em prática o desejo de voar no pescoço de Paulo Sergio, por ser enxerido e mala, Vander é interrompido pelo Toyota que buzina frenético na frente do mercado.
Tia Ema e Tio Zeca, pais do amigo de infância Pê Ésse, praticamente gente da família, viram Vander crescer junto com o filho desde os tempos do colégio, e agora estacionavam o carro para se juntar a pé ao grupo na calçada.
– Se tivesse combinado não dava assim tão certo, não é não? Todo mundo junto em reunião – se admira, feliz, Tio Zeca.
– Olha que de repente o Vander até combinou, vai saber, ele anda todo sociável – provoca Paulo Sérgio.
– O Pê Ésse ficou gordo e careca na quarentena e agora deu pra implicar comigo, tio, tá vendo isso?
Todos, menos Paulo Sergio, riem alto e juntos, enquanto Tia Ema quer saber melhor que história é essa de sociável. Tio Zeca é mais rápido, e, botando a mão no ombro de Vander, porque quase parente pode ser dar a esse tipo de liberdade mesmo no apocalipse, pergunta se o quase sobrinho ficou sabendo do vexame ao qual o amigo gordo e careca de Vander expôs a família toda na semana passada.
– Chamou a faxineira, Vanderlei, a faxineira!
– Não é possível! Faxineira é gente, cara, não foi assim que você me disse?
– Se foder, Vander. A casa tava imunda. A Catarina grávida não pode fazer muita coisa, sobra tudo pra eu limpar sozinho. E eu não aguentava mais pendurar roupa, cara.
Tio Zeca desanda a tossir num ataque de riso, orgulhoso por ter sido ele a instaurar o caos que agora controla o grupo, e o que antes parecia ser uma mão de apoio em prol da restauração breve do marido engasgado se revela na verdade, aos olhos dos outros, um beliscão de censura nas costas de Zeca.
– Aproveita e conta pra eles do bar, José Carlos.
– Bar, que bar? – se interessa Catarina.
Parece que, quando foi sair para passear com o cachorro, há algumas semanas, Tio Zeca tomou as providências para que o surpreendente acaso acontecesse, e os dois melhores amigos surgissem na mesma praça, na mesma hora, debaixo da mesma árvore, para também passear com as mascotes da família.
Fajutamente surpreendidos, fingindo espanto com louvável dedicação, rumaram os três – com os cachorros álibi – para celebrar a manobra do destino, que mui generosamente havia botado todos na rua, durante uma pandemia, em condições idênticas.
Não contavam era com o garçom, o Freitas, que, puto com a reabertura da firma, não se conformou em ver os três mais antigos clientes se acomodando à mesa perto da janela, eles, que Freitas julgava serem homens tão sensatos, agora brindando com cerveja a imprudência coletiva.
Passou a mão no telefone do balcão e me ligou, conta Tia Ema para o grupo estupefato.
– Perguntou se eu queria aproveitar a passagem do marido para encomendar os bolinhos de bacalhau que eu tanto gosto. O tio foi dedado assim na cara dura. Chegou em casa com o rabo mais encolhido que o do Peteca.
Paulo Sérgio achou ter visto um rubor excessivo nas bochechas de Vander, ainda mais flagrantes que o desgosto das sobrancelhas, e só por isso preferiu não revidar a encheção de saco sofrida desde que deu oi ao amigo meia hora atrás na porta do Pão de Açúcar. Parece que todo mundo dá suas escapadinhas, pensou, e quis cochichar com Catarina.
A assembleia extraordinária se desfez em um misto de choque e falta de assunto. Voltariam todos a se encontrar novamente, de caso marcado, após quatro tentativas e muito agendamento, só dali a dois anos, quando chegaram ao fim a quarentena, o vírus, as máscaras, e a indignação seletiva.