Morrer amanhã

Uma grávida de 34 anos deu à luz já inconsciente, e morreu sem ver a filha recém-nascida. Um homem de 37 tinha se mudado havia duas semanas para morar com a namorada, e morreu antes mesmo de desembalar todas as caixas. Outro, de 52, andava ansioso com a formatura do filho na faculdade em dezembro – não deu tempo de esperar.

Se eu morresse amanhã, morria triste de deixar tanta coisa pra trás. Nenhuma hora é boa de se morrer, claro, mas essa agora, justo amanhã, ia não só levar embora comigo as memórias e a expectativa de viver por muito tempo, mas principalmente largaria pelo meio muitos planos importantes.

Quer dizer, eu acho que parece importante ansiar pela florada anual da rosa do deserto que botei perto da janela, para pegar bastante sol. Enfrentei até infestação de pulgões. Eliminei os ovos com cotonetes todo dia de manhã, limpei as folhas com pano. Reguei e adubei a terra. Morrer antes de ver o primeiro botão não parece simpático.

Tem o romance que finalmente comecei a escrever, e que eu não gostaria de partir antes de terminar. Coisa mais sem graça, almejar a vida toda publicar um livro, e deixá-lo escrito pela metade, com os personagens sem saber pra onde ir. Infeliz do escritor que morre antes de bater a página 100.

Morrendo amanhã, não dava tempo de juntar dinheiro para deixar para o meu filho. Ia ficar faltando ajudá-lo na escola nova, no vestibular, vê-lo escolher uma profissão. Não ia dar para saber se ele foi feliz ou não. Nem se comeu direitinho o café da manhã de terça-feira.

Meus pais chorariam o adeus imprevisto. Um filho morrer antes da gente nunca faz parte dos planos. Mas ir embora assim de repente pioraria tudo, eu acho, porque já há meses que não nos vemos. E não ia sobrar ninguém para cuidar deles na velhice. E aquela viagem juntos até algum país distante e bonito não ia mais poder contar comigo.

Se eu morresse amanhã, eu não conheceria em janeiro o bebê da minha amiga. Não saberia se vai mesmo haver ou não um Carnaval. Se vai ter vacina, em que data reabrem as praias, quem vai descobrir a cura. Ficaria eternamente em dúvida sobre quantas cientistas salvarão o mundo dessa vez e sempre.

Era tão melhor não morrer amanhã para esperar e ver quando e de que jeito o presidente cai, se ele pede perdão, se lamenta as mortes, as injúrias, os pés pelas mãos. Ver se quem votou nele admite a culpa, compartilha do crime, sente remorso. Desvendar o modo como sumirão para sempre os desembargadores, os engenheiros formados, os racistas de condomínio.

Ainda faltam três anos para acabar minha segunda faculdade. Duas vidas para ler tudo que eu quero. Uma boa década para dormir no peito do homem que eu amo, outra para conhecer de verdade as mulheres que me cercam. Morrer amanhã não vai me ajudar em nada.

Os planos de mais de 100 mil pessoas só parecem desimportantes porque elas são anônimas. Dê uma cara a elas, e uma lista de sonhos publicada no jornal, e morrer amanhã deixa de ser normal para se tornar, enfim, inaceitável.