Pesadelo de mulher
Cientistas de três grandes universidades brasileiras estão pesquisando os sonhos na quarentena. Parece que a gente tem sonhado mais, de forma mais vívida, e também tido mais pesadelos. Ninguém me perguntou nada, ainda, mas asseguro que eu poderia colaborar bastante com os estudos. Minhas noites têm sido confusas.
De ontem para hoje até que não foi tão mal. Uma espécie de fazenda, mais de 400 pessoas reunidas para um almoço beneficente. A aniversariante faz discurso de agradecimento, e avisa que o ravióli com queijo de cabra que era de graça sairá por um preço amigável. Minha cachorra sumia na multidão, minha gata caía morta de cima do muro. Um sonho tranquilo, na média.
Há algumas semanas, no entanto, o pior de todos. Vinha o aviso de que minha relação tinha chegado ao fim, o que já parecia lamentável o suficiente, poxa, justo agora, mas, enfim, sobrevive-se. Mas porque não era um pesadelo qualquer, e sim um pesadelo pandêmico, a parte que optava pelo término agia com crueldade.
Em resumo, eu era apresentada, a título de tortura, à minha substituta, alguém muito melhor que eu porque mais esperta, jovem e bonita. Ela tinha sorriso de comercial de pasta de dentes. Acho que cheirava a banho tomado, mas talvez essa parte eu tenha inventado já acordada – neurose é neurose em vigília ou no sono.
Ele e ela riam, abraçados. Contavam que tinham se conhecido naquela noite em que eu fui viajar a trabalho, em janeiro, e ele, que havia dito que dormiria mais cedo que o usual, foi ao bar com os amigos. Foi tesão à primeira vista, garantiam os incisivos e molares muito brancos dela. Dois beijos de boca bem molhada. Acordei chorando.
A última vez que isso tinha acontecido, de amanhecer em prantos, foi porque meu filho tinha morrido despencando sem querer da janela do sexto andar – sou mesmo um prato cheio para pesquisadores de sonhos. Preocupado com uma nova morte imaginária na família, meu namorado de pronto se dispôs a novamente me acudir, abrindo os braços para o consolo.
Agora me explica como é que eu vou me jogar no abraço de um adúltero. A ação mais prudente que ele poderia ter neste momento era a de arrancar o próprio pau com faca cega, arremessar descarga abaixo, e se ajoelhar aos meus pés implorando perdão eterno. Só que ele continuava deitado, de pijama, com o pau preso ao lugar de sempre, me olhando confuso e ainda meio sonolento. Não tem como argumentar com um homem desses.
Foram infinitas horas do dia até eu resolver que já dava para ao menos responder às perguntas de ordem prática que ele fazia. Não, eu não quero sobremesa. Não, sua guitarra não está me atrapalhando. Sim, eu desejo que você morra só porque me traiu com uma garota. Oi?
Eu agora vou explicar aqui ao leitor, ao Christian Dunker, e aos amigos dele de pesquisa nas faculdades aquilo que já expliquei ao meu atônito namorado naquele fim de tarde de quarentena. Óbvio que a culpa daquilo que meu inconsciente produz enquanto eu durmo não é de ninguém exceto minha, e que um parceiro tão bacana não merecia que eu passasse um dia inteiro de mal e fazendo cara de vômito toda vez que ele me dirigia a palavra. Aconteceu, ops, me desculpa.
Mas, mais importante que explicar algo que todo mundo já sabe é esclarecer o que talvez ainda passe despercebido: mulher nenhuma sai ilesa de um relacionamento merda. E as consequências da passagem de um pulha pela nossa vida muitas vezes seguem ecoando por anos e anos – e relações e relações – a fio.
É trauma que chama, USP, UFRGS e UFMG?
Eu, por exemplo, além de um marido que me traía e humilhava sistematicamente por uma década, também já tive um namorado que, por dois anos, aproveitava qualquer segundo em que não estivéssemos no mesmo cômodo da casa para assistir pornografia e se masturbar. Não é tarefa das mais fáceis entender depois que nem todos os homens agirão desta maneira.
Claro que não somos isentas da responsabilidade de ativamente buscar ajuda para superar o passado. O vitimismo é tão quentinho que a gente pode esquecer que dá para ir embora dele. Mas às vezes o abalo é grande, e as coisas não se resolvem de uma hora para a outra.
Enquanto homens se reerguem de relações tóxicas com mais facilidade porque são educados a não condicionar a autoestima à opinião alheia, e porque desfrutam de um sistema que ensina que mulheres são apenas números, facilmente descartáveis, nós penamos em uma batalha dupla.
Que começa pela luta para garantir a sobrevivência física, desde o dia um ameaçada, e entender qual o lugar que ocupamos no mundo por direito, e segue pela guerra da construção de uma identidade, de poder se orgulhar dela, e aprender a defendê-la a qualquer custo.
Parece fácil? É por isso que a gente sonha.