O corpo que habito

Líbero
Marcella Franco

A única vez que minha avó brigou comigo foi porque joguei um absorvente privada abaixo, daqueles grandes que a gente chama de modess. Enrolei bem bonitinho, ele fez ploft na água, e apertei a descarga assistindo seu caminho até o buraco do vaso. Quer dizer, a ideia era que ele entrasse no buraco, mas obviamente não entrou. Passou um pedacinho e ficou ali entalado, me olhando sem saber como sair.

Eu também fiquei sem ideia de como ia sair do banheiro e avisar minha avó que precisava de ajuda porque tinha entupido sem querer a privada. Não tinha a dimensão do erro, mas já me contorcia de humilhação e medo. Sabia que ia dar trabalho para a mulher que eu mais respeitava no mundo, e tudo pela minha menstruação.

Passei o fim da infância inteirinho desejando menstruar. Acordava e corria para ver se a calcinha estava suja. Fazia pequenas promessas silenciosas olhando entre as coxas, e ao santo que me ajudasse garantia devoção absoluta. Sentia como se meu corpo fosse controlado por alguém que não eu mesma. O divino. Talvez minha avó.

Li esses dias o romance do Itamar Vieira Júnior. Nem o acidente que decepou parte da sua identidade fez a protagonista de “Torto Arado” se sentir dona do próprio corpo. Escondida da avó, mas ainda temente a ela, a menina pega o facão guardado há décadas na mala debaixo da cama. Sangra. Quase morre. E seu corpo ainda não é seu.

Precisa viver muitos anos depois disso, enfrentar um marido agressivo, livrar-se dele, e só, então, tomar posse. Enfim dominar cada pedaço do chão que habita. Para sentir prazer em ganhar carinho, quando alguém vem trançar seu cabelo. Para sentir afeto pelos outros e também por ela.

Mulheres passam mesmo grandes pedaços da vida como inquilinas de si mesmas. Ao menos é assim que nos sentimos. Ocupando algo que não nos pertence, e que é da jurisdição de outro. Como acreditar que não é isso, se quem devia zelar pela integridade do nosso corpo escolhe mandar nele a todo custo? Alguém que se entende ministra de todas as mulheres?

É por isso que amo a literatura. Porque ela é tão aberta, mas ao mesmo tempo tão justa em sua beleza. Em páginas de livros não cabem Damares. Só cabem Belonísias e Bibianas, só cabe eu, só cabe você. Nelas a gente sangra com um propósito, e ele envolve sempre libertação, nunca clausura.

Passei o fim da infância inteirinho desejando menstruar. Três décadas depois, e a menstruação é o meu maior problema: queria poder sangrar todo mês, e não posso. Mas está tudo bem, também, porque já há um tempo que eu descobri quem manda em mim nessa história. Nunca foram os santos, tampouco a minha avó. Sempre fui eu, a grande protagonista.