O segundo governo Bolsonaro
Tenho visto bastante gente reclamando deste segundo governo Bolsonaro. Dizem que o presidente é inábil, ignóbil, incrivelmente instável. Mas só se espanta com o clima de suspense e apreensão de agora quem não viveu o primeiro governo Bolsonaro. A gente, que estava lá, hoje em dia não se surpreende com mais nada.
Naqueles tempos, as ameaças eram bem comuns. Coisas tipo essa frase dita no começo da semana, sobre o líder estar à beira de tomar “aquela decisão”. Fica todo mundo com medo, né. Vai saber qual decisão é essa. Mas, o pessoal que viveu aquele primeiro governo garante: quem ameaça demais, pouco faz.
Era até um ditado na época do primeiro governo Bolsonaro. Que, pra quem não se lembra, aconteceu não especificamente em um momento do país, mas, sim, em um momento específico da vida da gente, que hoje cresceu e virou mulher.
O primeiro governo Bolsonaro podia até não ter o Bolsonaro, mas tinha um monte de homem igual ao Bolsonaro tomando conta de tomar conta da vida da gente. E se ocupando, junto com isso, de meter terror como forma de liderar.
Quem foi menina adolescente perto de figuras masculinas dominantes pode se declarar sobrevivente do primeiro governo Bolsonaro. Um período histórico em que palmada era coisa de frouxo, e onde chefe de família bom mesmo só trabalhava com chinelo pra cima.
Volta e meia a população que viveu este período se sentia intimidada: se as coisas não mudassem, ia ficar todo mundo sem figura paterna. Ou o pessoal andava na linha e acabava com a baderna, ou o primeiro governo Bolsonaro ia mostrar o que era bom pra tosse.
Daí que a gente, menina, aprendeu a tossir escondido. As mais espertas desenvolveram técnicas de guerrilha. Houve quem se exilasse para além das fronteiras, na casa da avó ou na de uma amiga. Onde fosse possível evitar um dos piores símbolos do primeiro governo, além das ameaças e da violência gratuita: as piadas sem graça.
Todo mundo era alvo, naquele mandato, das anedotas inadequadas. Mas, a exemplo do que aconteceria anos depois, no segundo governo, os primos negros das meninas, as amigas lésbicas das meninas, os vizinhos gays das meninas, e os ancestrais índios das meninas, assim como as próprias meninas, eram os focos favoritos da malícia.
O primeiro governo Bolsonaro podia até não ter o Bolsonaro, mas tinha aquelas figuras paternas iguais ao Bolsonaro, e vinha ainda, de brinde, com alguns tios escolhidos para os ministérios.
Quem viveu naquela época costuma lembrar o tio da pasta da mulher e família, que mandava todo mundo pra igreja no domingo e falava que aborto aqui em casa nunca, e também o tio responsável pelo meio ambiente.
Era geralmente dele que partia a ideia de mandar prum sítio os cachorrinhos que envelheciam. Ou a decisão de cimentar o gramadinho do chalé que a população mantinha pras férias em família no litoral.
Em resumo, não é que o segundo governo Bolsonaro seja menos complicado para quem viveu o primeiro. Se submeter a figuras masculinas de liderança desequilibradas emocionalmente nunca é fácil, seja na política ou dentro de casa. É só que o fato de ter sobrevivido a estados particulares de exceção confere ao sujeito a estranha mania de ter fé nas coisas.
Porque se o tio crente, o avô racista e o pai agressivo conseguiram mudar, resta uma pontinha de esperança de que todo o resto também mude. Talvez não neste mandato, pode ser que realmente não dê mais. Mas ao menos que seja a tempo de evitar a terceira edição do governo Bolsonaro.