Apegada
Um escritor querido, com quem dei aula na semana passada, entrou no Zoom com uma cara melhor do que a de sempre. “O Átila liberou nosso café”, me avisa, feliz com a notícia de que, em São Paulo, a quarentena dava sinais de que ia abrandar. A gente continua sem se ver pessoalmente, o escritor e eu, mesmo com o Átila dizendo que pode, mas há realmente alguns dias que as coisas parecem um pouco mais relaxadas por aqui.
Em casa, por exemplo, houve consenso de que tudo bem aceitarmos o irrecusável convite de um amigo para passar o último feriado na fazenda. Espaço para o menino jogar bola, correr e tomar sol, piscina para os dias mais quentes, e companhia excelente de gente amada e tão quarentenada quanto nós.
A única contrapartida eram cuecas. Não de todos os convidados, só do meu namorado mesmo. O dono da casa tinha ido antes para o refúgio, e a sacolinha com roupas de baixo ficou esquecida em cima da cama em São Paulo. Será que é esquisito emprestar cuecas, me perguntaram, e eu tive que responder o que pensava de verdade.
Meninas não emprestam calcinhas. A gente separa algumas na gaveta, bota num saquinho de pano, e dá pra amiga esquecida. Toma, que elas agora são suas. Já dei calcinhas para amigas ao longo da vida. Mas fiquei pensando que foram raras as vezes em que me desprendi de coisas com facilidade, mesmo que fosse para salvar uma conhecida nua.
Sofro de apego crônico. Egoísmo selvagem. Talvez pudesse culpar a infância sem grandes luxos, mas sei que é uma justificativa que não passa no controle de qualidade da sessão de análise. Deve ser porque fui filha única. Porque tenho uma personalidade tóxica. Porque nasci sob o signo de touro. Porque não completei a evolução da alma.
E, se sofro com a perspectiva de dividir coisas, compartilhar pessoas também não parece nada relaxante. Espero que ao menos nisso Lacan me ajude com teorias, explicando essa conexão direta e incorrigível entre o apego material e o emocional. Porque existe no mundo um total de zero pessoas que sofrem de apenas uma dessas modalidades.
No filme “Me Chame pelo Seu Nome”, de 2017, há a cena clássica entre o jovem e o visitante que se apaixonam e vivem um breve romance durante as férias de verão, aquela em que eles decidem juntos que se chamarão, na intimidade, pelos nomes trocados um do outro. Não à toa é o momento que dá o título ao filme.
Ao chamar você pelo meu nome, e responder quando você disser o seu para mim, fica estipulada uma fusão de identidades possível apenas em relações de paixão profunda e entrega total. É lindo. Mas não deve ser muito saudável, se durar além de uma estação.
Este final de semana, todos providos de cueca e felizes depois do futebol, corrida, sol e piscina, a busca da Netflix sugeriu “Professor Polvo”, uma produção sul-africana de nome terrível, mas com uma boa sinopse: um mergulhador registra a relação de afeto que desenvolve com um polvo fêmea em uma floresta subaquática.
Não sou de contar finais, mas também gosto de imaginar que os leitores não são tontos e entendem que documentários desta natureza podem prever finais emocionantes, porém não muito felizes. Choramos todos, acho, a sala de TV da fazenda estava quase escura.
Perguntei ao moleque, então, o que ele achava de o mergulhador, que visitou o polvo diariamente ao longo de um ano inteiro, não ter dado um nome ao animal – ele só usa o pronome “ela” para contar sua história toda, em uma hora e meia de filme.
“Ele sabia que ela não pertencia a ele, e que em algum momento eles iam seguir caminhos diferentes”, respondeu. Que incrível que é ser apegada emocionalmente a alguém assim ainda tão jovem e com uma sensibilidade já tão brilhante.