O pivô

Divulgação Fini
Marcella Franco

A distância de São Paulo para Assunção, no Paraguai, é de mais de 1.300 quilômetros. De carro, isso se traduz em 18 horas na estrada. Minha mãe fazia essa viagem uma vez por mês, quando eu era pequena, sentada em um ônibus de sacoleiros que saía da frente do antigo prédio do Detran, na Avenida 23 de maio. Ela vivia exausta. Teve uma vez em que voltou com pneumonia, foi internada, e nunca mais visitou o Paraguai na vida.

Minha mãe não ia para Assunção porque achava o rolê legal pra caralho. Ela ia porque a patroa dela pagava pela viagem, e dava um adicional para a minha mãe trazer malas e malas com produtos importados para serem vendidos na papelaria da Paula. A Paula era a patroa da minha mãe. E, se esse fosse um blog com mais engajamento antropológico, eu certamente ia falar da relação de exploração da Paula sobre a Tereza, mas hoje eu vou focar nas balas Fini.

As balas que a minha mãe trazia do Paraguai em uma das malas da Paula, junto com apontadores, cadernos, estojos divertidos, e que me dava sem precisar prestar contas para a patroa porque eram compradas com o próprio dinheiro, na verdade não eram da Fini, mas sim da Haribo, uma marca alemã que era sucesso em balas de goma até a Fini chegar e dominar o mercado todo.

Não sei se por questões afetivas ou só mesmo pela textura de borracha, sempre fui fissurada em balas Fini/Haribo. Na minha infância só existiam os ursinhos coloridos, mas hoje meus modelos favoritos são, em ordem decrescente, 1) as bananas, 2) os beijos de morango, 3) as amoras roxa e vermelha, 4) minhocas.

Comprei um pacote de minhocas neste fim de semana, para comer escondido do meu filho – que já tinha ganhado um saquinho só para ele, calma, Conselho Tutelar -, durante nossa viagem ao sítio da família. Mastigando uma cabecinha, meu dente restaurado despencou.

Ele já tinha feito isso antes, então não houve o espanto comum às primeiras vezes. Mas quem já teve dente quebrado ou caído sabe o tamanho do pesadelo, e ele aumenta muito quando você está isolado no meio do mato, a praticamente uma viagem de sacoleiros ao país vizinho de distância.

Chorei. Dei chilique. Falei que não havia mais sentido continuar sendo jornalista, que sou a pior mãe do mundo, que ia parar de reciclar meu lixo, porque claramente o universo me mostrava, com um pivô despencado, o tipo de ser humano desprezível que me tornei ao longo dos anos.

De volta a São Paulo, evitando sorrisos e alimentos sólidos, agendei consulta com uma dentista indicada por conhecidos. Não havia sentido voltar ao profissional que construiu a prótese que se solta com tanta facilidade (minhocas de gelatina definitivamente não são um grande desafio digestivo), então era preciso arriscar alguém novo.

Você é jornalista, ela pergunta, enquanto eu já não podia responder mais nada além de ram-ram ou ã-ã. Pois eu atendi o Otavio por toda a vida, emendou, o Mesquita, não, minto! O Otavio Frias. Que surpresa feliz.

Ela entendeu quando, com a boca bem aberta, botei para funcionar a garganta e comentei que o Otavio foi meu chefe. Grande cara, educado, um professor (essa parte talvez tenha ficado incompreensível).

A secretária puxou do bolso do jaleco o celular.  Leu a última mensagem que ele mandou para a doutora. Otavio contou que ia ao hospital rapidinho, para tratar de um problema simples, e queria saber como cuidar direito das gengivas durante a internação.

Otavio só usava caneta Bic preta para assinar os cheques – aceitava azul em situações extremas, mas, se não fosse Bic, preferia pagar por transferência. Contou uma vez, sentado na cadeira – talvez tenha usado a garganta, também -, que trabalhava com jornal. A secretária achou que ele tinha uma banca. E, na sala de espera, ficava lá como qualquer um, e não como a celebridade que era – a equipe toda àquela altura já pensava que ele era muito famoso.

O motorzinho nesse momento já alcançava metade do caminho rumo ao meu cérebro. Algo como uma escala em Londrina, saindo de São Paulo e indo para Assunção. Mas, mesmo sem anestesia nenhuma, e só com recomendações breves de dois conhecidos, eu já não sentia mais dor alguma. Agora eu era só relaxamento e confiança. O Otavio era mesmo bom de escolher dentista.