O estupro culposo que elas não previram
Chegou ao final neste sábado (31) o podcast “Praia dos Ossos”, que já resenhei para este jornal na época da estreia, e que trata de evoluções no feminismo usando como base o caso do assassinato da socialite mineira Ângela Diniz, na década de 1970, pelo então namorado Doca Street.
Acompanhei a evolução do programa com fidelidade canina. E este último episódio terminei chorando. De ouvido atento enquanto preparava o almoço, minha vontade era aplaudir, de frente para o meu fogão e emocionada, Branca Vianna e Flora Thomson-Deveaux pela obra-prima que criaram, e que se desenha como um marco nos rumos da luta feminina por direitos e respeito.
Acontece que, no Brasil, as regras do jogo são esquisitas. Porque, a cada passo para a frente que damos no tabuleiro, manda o manual que os peões voltem duas casas para trás.
Em contraposição ao movimento fantástico de “Praia dos Ossos”, vem hoje a notícia de que a justiça brasileira proferiu uma sentença inédita no julgamento de um caso de violência sexual acontecido em 2018, contra a influencer Mariana Ferrer, à época com 21 anos de idade.
“Estupro culposo”. Foi com esta argumentação que o promotor do caso conseguiu convencer o juiz a abrir as portas do tribunal e liberar o empresário André de Camargo Aranha, declarado inocente. Um parêntese didático: quando um crime é considerado “culposo”, é porque a justiça entende que não houve a intenção de cometê-lo.
Oras. Concentrem-se no tamanho deste desafio, o de imaginar como é que alguém comete um estupro nestas condições. Difícil. Quase impossível. Já para os magistrados parece simples: não haveria como Aranha saber que Mariana não estava em condições de consentir a relação.
Importante dizer que estupro culposo é um verbete que não consta do compêndio de leis brasileiras. E, justamente por isso, deve ter sido possível manobrar o julgamento a ponto de absolver o empresário.
As imagens da audiência às quais o jornal Intercept teve acesso, e divulgou em reportagem, são de embrulhar o estômago. Para poupar quem não gosta de filmes de terror, o spoiler é que a vítima é humilhada constante e gravemente pelo advogado de defesa do réu.
Não sou das mais místicas, religiosa tampouco, mas algumas coincidências me fazem questionar se há alguém no comando deste Jogo da Vida. Pouco antes de saber das atualizações do caso da Mariana, que acompanho já há tempos, recebo a mensagem de uma grande amiga pedindo desculpas por precisar tocar em um assunto delicado.
Ela precisa avisar, com peso no coração, que alguém muito próximo a mim, e a quem eu respeitava bastante, se comportou muito mal na juventude não muito distante. A conduta questionável? Algo semelhante ao que Mariana Ferrer alega ter sofrido com André de Camargo Aranha.
Em uma festa, o clássico ao qual tantas de nós alguma vez se viram expostas, ou de que todas nós pelo menos já ouvimos falar: o estupro de vulnerável, quando a relação sexual se dá tendo uma das partes inconsciente.
Quem nunca soube de uma festinha em que uma garota bebeu demais, e acordou confusa em cima de uma cama pela qual passaram um ou mais homens que se diziam amigos dela? Quem não conhece quem tenha sido conivente ao abrigar e não impedir a evolução criminosa de festinhas em que garotas bebem demais e acordam confusas em cima de uma cama pela qual passaram um ou mais homens que se diziam amigos dela?
Ser mulher no Brasil é para as fortes. Com o “estupro culposo” do caso Mariana Ferrer, abre-se no país um novo capítulo na história do feminismo – e ele não é bonito. Corram aqui, Branca e Flora, e olhem só o que fizeram daquela esperança que vocês nos trouxeram aquele dia.