Escritores de bilhão

José Saramago disse que só existem dois tipos de escritor: os que escrevem, e os que não escrevem. Quem me falou isso não foi o Google, foi o Drauzio Varela. No meio da quarentena, inventei de falar com escritores em um podcast, e o doutor era um dos primeiros da lista. Desde então eu fiquei querendo citar esse Saramago em algum lugar.

O grande dia chegou.

Queria saber se o Saramago topa abrir uma exceção e se corrigir pra dizer que na verdade não são só dois os tipos, mas três. Tem o escritor que escreve, tem o escritor que não escreve, e tem o escritor que escreve até a mão cair exausta na hora do pôr do sol e do começo da novela.

Tem quem diga que jornalista não é escritor de verdade. Pois eu respondo que a gente é escritor e escritor até mais gabaritado pro ofício. A gente sabe entrevistar pessoas, a gente sabe costurar informações de milhares de fontes, e, sobretudo, a gente sabe trabalhar com prazos escrotos.

Se eu somar tudo que escrevi esse mês, dá bilhão. Botando tudo empilhadinho impresso, sobe até as calças do Borba Gato. E, se espalhar no chão todas as linhas, a gente desce a serra de São Paulo a Santos, e estica o chorinho até a Ilha Porchat.

Depois que você passa 20 anos escrevendo, algumas partes do processo entram no modo automático. Coisas deixam de ser difíceis como eram no começo. Dá para bater trechos de textos ouvindo música, por exemplo, coisa que o Chico Buarque (Chico Buarque, hein) já disse em entrevista que ele não consegue fazer.

Se precisar de ajuda, Chico, me aciona. Mostro sem grilos que “Faroeste Caboclo” pode comer solta e inteirinha no fundo que mesmo assim a gente cria coisas ótimas. Especialmente depois de muito treino forçado por causa da profissão.

Tem situações, no entanto, que nunca vão deixar de ser tensas. Como quando seu editor te pede uma matéria com 6 mil caracteres. Escrever 6 mil caracteres significa em média escrever 24 parágrafos. Segura na minha mão e me abraça.

Não é nem preciso dizer que sempre são 24 parágrafos pra hoje, né? E não para janeiro de 2023.

Daí acontece assim: você faz as entrevistas, transcreve as gravações para o papel, aquilo vira uma infinidade de palavras, parece que vai dar e dar com folga.

Mas você começa a ler o que os entrevistados falaram, percebe que talvez não consiga salvar muita coisa, e automaticamente você entra em pânico porque, óbvio, aquilo não vai dar 6 mil toques nem ferrando.

Você pensa em pedir ao editor que diminua um pouco o espaço. Chora. Às vezes precisa contar uma história triste. Pode ser que ele te atenda. Tem dias em que ele vai fazer isso numa boa, em outros ele só vai te mandar uma resposta curta: 5 mil.

E você sente vontade de celebrar, porque afinal de contas agora são apenas 21 parágrafos e meio pra finalizar. E isso te dá até um gás, um joie de vivre, você se sente o cidadão mais sortudo do mundo, o jogo virou, e ele está a seu favor.

Só que agora não cabe. Você não só já escreveu 5 mil, como escreveu também os 6 mil originais, e ainda passou deles há muito tempo. Sua tarefa agora, além de revisar e procurar deslizes, é cortar 1.900 toques. Você sente vontade de dormir e só acordar quando voltar a ser criança.

Nós, jornalistas escritores de bilhão, somos verdadeiros heróis do Word. Deram um Jabuti pro cara que não digita ouvindo música, e um Nobel pra alguém que não lembrou que a gente existe. Estou curiosíssima para saber o nome do prêmio que vão criar pra dar pra gente.