Botox e o desserviço ao feminismo

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Marcella Franco

Quando engravidei do meu filho, além do volume na barriga, surgiu também uma pinta esquisita na minha testa. Como era vizinha a uma outra que minha mãe dizia que eu sempre tivera (e que misteriosamente sumiu na juventude), imaginei que pudesse ser uma reedição da pinta antiga, ou quem sabe até um desdobramento. Afinal, eu também me desdobrava ali, lentamente, em uma pessoa adicional.

A poesia barata não convenceu meu amigo médico. Numa visita prum café em casa, ele viu que a mancha marrom só crescia, talvez mais rápido até do que o próprio bebê, nascido já fazia mais de ano. Me deu bronca. E eu marquei minha primeira consulta em uma dermatologista.

O consultório da doutora Carmen parecia muito mais caro do que o meu convênio podia pagar. Casas com escadas curvas no meio da sala toda de mármore são sempre coisas impressionantes, e não à toa estavam em todos os núcleos ricos das novelas da Globo dos anos 1990. Subi à sala de exame me sentindo a Carolina Ferraz.

Ao fim da consulta, saí com a pinta, aparentemente benigna, e sem pagar um real.

Saí também com receitas para cremes manipulados, uma indicação de outros produtos que qualquer esquina vendia, e um pedido para colágeno em pó de uma farmácia chiquérrima, que fazia sachêzinhos efervescentes com gosto de refresco de limão ou laranja, pode escolher. Procedimentos, doutora? Para você, ainda não.

Tudo aconteceu há muitos anos. Quando eu ainda parecia distante dos temidos 40, aquele momento da vida em que os homens – aqueles de quem a gente infelizmente ainda gosta, e a quem infelizmente ainda são confiadas todas as decisões sobre o que tem valor ou não no mundo – passam a dizer que somos velhas. E a gente infelizmente passa a acreditar.

Saindo da escola do meu filho, depois de deixá-lo na aula, uma outra mãe (ou talvez ela fosse uma maluca nômade muito bem vestida) me abordou no portão. Achou um absurdo eu já ter um filho daquela idade. Disse isso rindo, pelo menos, senão certamente eu teria ficado com medo. Ou ofendida. Ou os dois.

Expliquei que só pareço jovem. Que na verdade sou uma senhora, que já não tenho valor sexual na sociedade, que olha aqui essa pelanquinha em cima do olho, esse bigode chinês, enfim. Fiz o papel que me é esperado como mulher, de me colocar para baixo sozinha, sem precisar que ninguém me ajude.

“Mas você faz umas coisinhas, né?”, perguntou, girando o dedo indicador em volta do próprio rosto. Olha, eu ainda não fazia coisinha nenhuma. Mas, naquele momento, achei que talvez fosse o sinal para começar a fazer.

Esperei até 2020, na pandemia, com todo mundo engordando, entristecendo, e envelhecendo 50 anos em cinco meses. Doutora Carmen se ligou que sua escada curva no casarão com sala toda de mármore era demais para mortais da Amil, e agora não fazia mais parte do meu plano. Procurei uma indicação mais perto de casa.

Como eu previa, já dava, sim, para começar a fazer coisas pela pele do meu rosto, especialmente preventivas. E, como eu não sou a Jennifer Lopez, não tenho problema nenhum em escrever sobre isso e dizer: fiz botox e preenchimento, não me arrependo de ter feito, e ainda estou juntando dinheiro para fazer de novo. E por que fiz? Porque achei que devia, e porque gostei do resultado.

A JLo pode até achar que a gente acredita na sua rotina da skincare exclusivamente à base de azeite de oliva por 51 anos. Mas o desserviço que uma mulher famosa, talentosa e ainda por cima bonita presta ao dizer um absurdo desses não cabe num livro, nem mesmo em uma biblioteca inteira feminista.

Ser uma pessoa pública e não querer divulgar voluntariamente uma informação estética é uma coisa – mas mentir sobre ela quando perguntada é algo muito diferente. E, graças à evolução do feminismo, estamos exaustas de ser feitas de otárias nesse aspecto.

Não à toa, passamos a idolatrar quem nos traz a verdade, mostrando que o normal é ser normal como a gente, com procedimentos, até, mas com celulite, sim, com estria, quilos onde não queria ter, nariz diferente do que sonhou.

Com 2,1 milhões de seguidores, a modelo e jornalista Danae Mercer, dos Emirados Árabes, se dedica a desconstruir a perfeição de fotos de celebridades nas redes.

Na Austrália, Celeste Barber satiriza para seus 7,5 milhões de seguidores as mulheres com formas insuperáveis que se dizem totalmente naturais, e que dominam aquilo de que o Instagram mais se alimenta: as aparências.

O ponto de ambas não é dizer que mulheres lindas são menores ou que merecem menos respeito, mas sim provar que, para exibir corpos e rostos perfeitos, quase sempre é preciso muito esforço, dedicação e, por que não?, às vezes até mesmo uma ou outra intervenção.

Aos 29 anos, a modelo Emily Ratajkowski, por exemplo, odeia o trabalho de Danae e de Celeste – a segunda é bloqueada em suas redes, e impedida de divulgar seu nome. Assim como Jennifer Lopez, Emily presta, com isso, um desserviço à evolução feminina.

Hoje é quinta, e o debate e esse textão aqui repercutem no grupo de WhatsApp das amigas antes que eu resolva publicá-lo. Alguém pergunta se pagar por procedimentos estéticos faz da gente menos feminista. Eu respondo que é justamente o contrário.

Que, sim, cada uma tem o direito de escolher divulgar só o que tiver vontade de sua vida pessoal, e que ninguém tem a obrigação de admitir absolutamente nada para ninguém. Mas que reivindicar uma sublimidade estética natural quando não foi assim que ela surgiu, isso, sim, é um golpe infame e imperdoável no feminismo.