Juíza Viviane, pela última vez

A noite de Natal começa com a notícia de que uma juíza foi morta na frente das três filhas pequenas, no Rio de Janeiro. O vídeo gravado por um vizinho mostra a cena, e reproduz os gritos das meninas, que imploravam para o pai parar de esfaquear Viviane Vieira do Amaral Arronenzi, sentada no chão, já ferida pelo ex-marido.

Um crime premeditado, ao que indicam as investigações. Das milhares de escolhas que tinha diante do fim do relacionamento, anunciado por Viviane em setembro passado, Paulo José Arronenzi optou por um crime.

Ouço o desespero agudo das filhas da juíza enquanto viajo de volta de Santos para São Paulo. No cemitério, a quatro quilômetros da praia, dava para sentir o cheiro da maresia mesmo debaixo da chuva insistente. Parecia, ali, em um breve período, que não havia lugar no mundo em que a dor fosse mais pesada que a nossa.

Talvez a besta tenha esperado nosso sofrimento acabar para erguer a faca no Rio. Penso se um mundo com quase 8 bilhões de habitantes funciona mesmo desse jeito, com turnos de desgraça sendo alternados para garantir que, por instantes, as tormentas sejam exclusivas de alguém.

Fazia poucas horas desde que dois coveiros tinham empurrado o caixão para dentro de uma parede. No cimento cobrindo os tijolos que fecharam a sepultura, escreveram com um graveto o sobrenome da nossa família.

Debaixo do andaime onde os homens se equilibravam, dois cachorros esperam o fim do serviço, enquanto lascas de concreto molhado caem e se agarram nos seus pelos das costas. “Eles escolhem ficar perto da gente o tempo todo”, explicou um dos funcionários. “Não importam muito as condições”.

Escolher me parecia coisa reservada aos humanos. Errar nas escolhas, então, mais ainda.

Rosa Montero escreveu em “A Ridícula Ideia de Nunca Mais te Ver” que, quando presenciamos uma morte ou um nascimento, uma brecha na ilusão brilhante da vida se abre, para que possamos enxergar o real funcionamento do mundo. Olho o caixão, os cães, a chuva. Então são estes os bastidores?

Milhões escolheram assistir o show que Caetano Veloso fez na internet, com a expectativa de abrir uma brecha na dor brilhante de uma quarentena eterna. Gosto quando ele explica que “de nada valeria acontecer de eu ser gente, e gente é outra alegria”.

Não tem sido fácil isso de acontecer de ser gente. Melhor seria ser cachorro.

Escolher, protegida na metade do corpo por um andaime bambo na quadra 80, esperar pelo fim do sofrimento dos outros, tantos outros, foram só 18 enterrados naquela véspera de Natal de 2020, e só então descobrir que talvez meu turno de martírio esteja reservado, e que pode ser que ele ainda chegue. E que seja mais duro que lascas de cimento fresco presos à pelagem.

No bloco abaixo da notícia sobre o assassinato covarde de Viviane, um link mostra imagens de passageiros aglomerados do saguão do aeroporto de Guarulhos. Viagens de Natal, de réveillon, de férias. No dia seguinte, a manchete de Natal fala que o Brasil já pode ter superado 220 mil mortos pela Covid-19.

Qual será a sensação de escolher a morte, seja a sua própria ou a de outro alguém? Como será que se decide assassinar alguém?

Uma matéria diz que, quando perguntado se se arrependia de ter esfaqueado a mãe de suas filhas, enquanto elas gritavam pedindo clemência, Paulo José “deu de ombros”, como se respondesse que tanto faz. Uma morta caída no chão, e outras três de pé, mortas, de olhos abertos.

Penso se no cemitério onde vão enterrar Viviane também moram cachorros. E se vai chover quando escreverem seu nome pela última vez.