2020, um ano sem saliva
Comecei (talvez tarde) a postar no Instagram uma retrospectiva das matérias mais legais que fiz em 2020. Percebi que não ia dar tempo para uma publicação diária cobrindo os doze meses, especialmente porque a primeira delas foi ontem e hoje o ano já acaba, mas, enfim, o que importa ao ser humano mesmo é a boa intenção e não a orientação espacial em si.
O objetivo da série de reportagens nunca foi só a autopromoção descarada, vejam como sou boa no que faço, mas também usar as redes sociais como uma espécie de museu de mim mesma caso eu venha a morrer ainda nesta quinta-feira, ou mesmo já no começo de 2021.
Afinal, o coronavírus, o desgosto e a velhice são destino inevitável para todos – a única coisa que a gente tem certeza que democraticamente não virá para nenhum brasileiro é a porra da vacina.
Este 2020 foi um canalha, como diz minha mãe, essa parte é inegável. Mas houve um momento dele que guardarei feliz para sempre na memória, e que eu toparia, para revivê-lo, até mesmo entubar outro 2020 a seco se preciso fosse: minha participação no programa “Roda Viva”, da TV Cultura.
Escalada para representar esta Folha na entrevista com a escritora Nélida Piñon, experimentei emoções variadas. No dia do convite, chorei, emocionada. Na semana seguinte, tive insônia, o que ajudou no projeto de reler tudo que precisava. Na véspera, tive dor de barriga. E, no dia propriamente dito, achei que fosse enfartar seis vezes.
Na sala de maquiagem, a gente fica se achando incrível, porque os funcionários fazem um trabalho espetacular. No cafezinho com a Vera e os outros colegas, antes de entrar no estúdio, tudo parece de novo sob controle, porque é preciso apenas repassar o roteiro de perguntas.
(Meu analista tinha dito que era para eu levar apenas cinco perguntas e improvisar o resto lá, porque mais que isso, assegurou ele, seria sintoma de neurose. Minha lista tinha 24 questões e duas faixas bônus.)
Porém, na hora que toca a musiquinha de abertura do programa, e aquela vinheta gira nos monitores pela primeira vez, ali eu achei que fosse vomitar de nervoso. Ou, no mínimo, cuspir um pedacinho do coração pela boca.
Se no Roda eu estava deslumbrante, nas minhas idas ao supermercado em 2020 eu devia parecer um trapo. Um dia, no corredor das geladeiras, topei com um dos colunistas mais profícuos aqui deste jornal, e que me contou, entre um iogurte e outro, que já estava de saco cheio, que tinha medo de ficar sem dinheiro, sem a filha, sem cabelo, sem saúde.
Horas depois, o colunista me escreveu no WhatsApp. Oferecia ajuda para o caso de eu estar sendo agredida pelo namorado que ele havia acabado de conhecer lá no mercado, ele não sabia se podia confiar que se tratava de um cara bacana, mas que no fim das contas aquelas manchas roxas que eu tinha no olho o haviam deixado preocupado e em estado de alerta.
Eu só tinha decidido que naquela semana não passaria mais o corretivo para olheiras. Grande erro. Eu agora parecia alguém que precisava de um médico, ou da polícia. No Pão de Açúcar, vivemos também outro momento notável de 2020: quando fomos todos desafiados a abrir saquinhos de hortifrúti sem usar saliva na ponta dos dedos.
Se não pode tirar a máscara para nada, obviamente não dá para cuspir na mão em público. Conheci, nesses 300 dias de isolamento, mercados que já deixavam várias sacolinhas abertas e dispostas nas gôndolas para os clientes. Uns fofos.
Em outros, consumidores deram show de técnica ao esfregar o plástico entre as mãos, para vê-lo, aquecido, se abrir como uma flor de primavera. Comigo, o que funcionou foi pingar álcool gel para umectar as digitais, imitando a baba de maneira fidedigna e eficaz, e abrir os saquinhos aos milhares diante de hordas de fregueses incrédulos.
Foi assim que enchi meus carrinhos com ingredientes infinitos para as milhares de receitas que resolvi executar em casa, no início da pandemia, quando eu ainda tinha paciência para cozinhar três vezes ao dia.
O passar dos meses, no entanto, me transformou de Ana Maria Braga em sócia do Rappi. O aplicativo assumiu a tarefa de me manter viva trazendo insumos necessários à manutenção de uma alimentação regrada: a cada uma hora, uma besteira calórica ingerida. Sem falhas.
Fomos, de fato, a extremos neste 2020. Pulamos de gastadores compulsivos no Mercado Livre a poupadores desesperados no último bimestre. Com a escola das crianças instalada em casa, nos transmutamos de Drauzio Varella paciente em pais que evocam o Homem do Saco no recreio.
Em março a gente não conseguia dormir. Em novembro, a gente não conseguia acordar. A vida fitness do primeiro semestre deu lugar ao sedentarismo mórbido no segundo. O plano de endurecer a bunda já foi realocado para depois da aplicação da segunda dose de Coronavac – ou seja, nunca mais nessa existência humana.
E, ainda que essa instabilidade não nos orgulhe, se houve maiores guerreiros que a gente foi neste ano, desconheço. Somos uma exibição em looping do meme da Deise bêbada: levantando, vivos, e ainda fazendo caridade.
Estamos numa agonia imensa para voltar a passar saliva nos saquinhos, nos dedos, nos amigos, em desconhecidos, é verdade. Mas, depois desse desafio que foi 2020, a gente aguenta qualquer coisa, inclusive esperar mais tempo.
Disseram que a palavra do ano foi resiliência. Se não foi, devia ter sido, caso houvesse concursos para eleger coisas e definir períodos. Que em 2021 a gente continue sabendo se adaptar e encontrar saídas.
Feliz ano novo.