Obsessão pelo corpo delas
Um homem uma vez me confessou que tinha muita vontade de aprender mais sobre o feminismo, para conseguir se modificar de acordo com o que entendesse ser possível. Mas, dizia ele, mesmo com esse desejo, ainda era difícil encontrar quem tirasse suas dúvidas com calma, sem entender que indagações às vezes podem ser fruto do desconhecimento, e não da arrogância.
Sim, eu sei que nós mulheres não estamos bravas, estamos exaustas. E que isso transparece no reflexo que quase sempre temos diante de situações como estas, de questionamento sobre as demandas da luta feminista. Porém, ainda assim, gosto de manter em mente, em qualquer circunstância, essa conversa que tive no passado. Ela me serve como uma diretriz para atuar melhor.
E é ela quem me orienta aqui hoje, ao publicar este texto. É por ela que parto do pressuposto de que talvez seja importante explicar antes de discutir. Nos últimos dias, duas colunas também da Folha trataram, cada uma à sua maneira, do emprego do corpo feminino no mundo. Ambas foram assinadas por doutores em filosofia.
Na primeira, o assunto é aborto. A autora defende que há limites para a liberdade total da mulher decidir se quer dar continuidade a uma gravidez não planejada. Ao dizer que o feto é “a mais frágil, indefesa e inocente de todas as criaturas”, explica que não é apenas o corpo da mulher que estaria “em jogo” diante desta decisão.
Classifica como decadência moral a liberação do aborto, enquanto reconhece que estar grávida de uma criança que não se quer é uma “situação limite”. Ignora no texto questões sociais, de saúde pública e de educação. E desvia deliberadamente de explicar por que mulheres não podem decidir o que fazer com o próprio corpo, enquanto aos homens é assegurado o direito de decidir não só o que fazer consigo, mas também conosco.
Publicado algumas horas depois, o outro texto, escrito em primeira pessoa por um homem, mescla as expressões “sexo frágil”, “mulher raiz”, “lugar de fala” e “sabor de mulher” em uma narrativa que pode até dar sinais de que veio em missão de paz, e que qualquer aparente ofensa seria apenas um mal entendido de quem não compreende humor e artimanhas literárias.
Acontece que provocações neste campo do feminismo são cafonas e arriscadas demais, e, se falta compreensão de alguma natureza, ela certamente não vem da parte do leitor.
Pode parecer difícil entender essa fixação dos pensadores sobre o corpo feminino. Basta, no entanto, uma breve visita à literatura feminista para esclarecer essas origens. Naomi Wolf, por exemplo, explica com clareza em seu “O Mito da Beleza” a função que a criação de padrões estéticos universais tem no controle das mulheres pela sociedade.
E isso mesmo que –e especialmente que- se diga que um verdadeiro “apreciador tende a ter um gosto inclusivo”, sem restrições às imperfeições e diferenças. Nossa luta, mais do que nunca, não é para que sejamos apreciadas, não custa repetir.
Sendo assim, a tal da “abordagem filosófica da estética” não deveria suscitar brincadeiras, especialmente quando há não só milhares de maneiras de se louvar e respeitar uma mulher, mas, principalmente, quando há milhares de maneiras de se fazer boas crônicas a esse respeito.
Outra autora importante para assimilar a obsessão sobre o corpo feminino no mundo é Silvia Federici, muito bem citada pela colega Vera Iaconelli em coluna publicada nesta segunda-feira (4), para falar também de aborto, mas em termos absolutamente opostos – e extraordinários, diga-se – ao do primeiro texto postado no jornal com este tema, nesta semana.
Vera lembra que foi do Renascimento em diante que se intensificou o controle da sexualidade da mulher, e da gestação e seus desdobramentos. “Só à base de muita violência e séculos de doutrinação é que as mulheres passaram a se identificar com seu lugar” de submissão ao homem, escreve a colunista.
Mas, se já sabemos a origem do problema, por que optar por perpetuá-lo? Por que seguir alucinados na fiscalização do lugar da mulher no mundo, conferindo a ele peso, qualidade, valor?
É fundamental debater questões como o aborto, talvez alguém responda. Concordo, desde que se trate de fato de um debate, com um pensar crítico, e com a construção clara de uma premissa – ainda mais quando a discussão diz nascer do campo da filosofia. Para enumerar julgamentos, bons ou ruins, nunca foi preciso ter doutorado em nada.
Entendo que, como feminista, é meu dever manter a calma sempre que possível, para conseguir me engajar com profundidade na luta. Respirar e escrever, por exemplo, quando o desejo na verdade é de gritar. Foi isso que aquela conversa antiga me ensinou.
Isso, e a compreender que, às vezes, as opiniões podem sair brutas e egoístas não porque falte conhecimento ao emissor, mas porque arrogantemente lhe parece mais cômodo não ter de mostrar ao leitor de onde veio seu ponto de vista.