Estoque de cloroquina

Mateus Bonomi/AGIF
Marcella Franco

Depois que descobriram que o aplicativo do governo recomendava cloroquina e remédio de verme pra qualquer ser vivo com dor de barriga (ou de cabeça, de unha encravada, de cabelo caindo), ontem ele foi desativado e acabou a graça de a gente simular tratamento pra cachorro, bebê ou espada de São Jorge.

Resta saber, agora, o que vai ser feito de tantas caixinhas extra do remédio. As matérias publicadas no meio do ano passado diziam que os estoques do Exército brasileiro eram tão surreais que havia cloroquina suficiente para abastecer a nação por 18 anos ininterruptos.

São cerca de 1,8 milhão de comprimidos que, agora, depois que todo mundo entendeu que não existe tratamento precoce para Covid-19, só vão ter vazão se o Brasil inteiro contrair malária. Ou desenvolver lúpus.

Daí fica a pergunta: que é que se faz com tanta cloroquina? Quem frequenta estas bandas para xingar colunista e escreve “mito, mito, mito” na caixa de comentários certamente sugere que eu pegue a caixinha e enfie onde o sol não bate.

Primeiro que sou tão fiel ao isolamento social que aqui o sol não bate em lugar nenhum. A dermatologista até pediu reposição de vitamina D. Segundo que, obrigada pelo interesse, mas não vai estar rolando. Sou da escola que entende que pimenta, refresco e remédio são coisas que os outros definem sozinhos onde e como pretendem usar.

O questionamento persiste. A solução mais óbvia e fácil seria usar todas essas caixinhas para fazer maquetes escolares com muitos prédios cheios de estilo. Umas unidades sozinhas de pé, outras deitadinhas e empilhadas. Algumas recortadas. Mas tudo formando uma cidade imensa, com plaquinha na frente escrito “Bem-vindos à Cloroquina”.

Mas a gente sabe que o governo não gosta de obviedades ou facilidades. Vai preferir soluções mais desafiadoras ao problema do estoque entupido. De repente uma boa era pavimentar as ruas esburacadas com as embalagens. Com esse tanto, resolvia o problema das 27 unidades federativas inteiras, e ainda sobrava.

Por falar em asfalto, valia quem sabe construir com caixinhas uma ponte ligando o Brasil a algum lugar bonito do mundo. Ou transformar o papelão em aço, e desenvolver trilhos para mais ferrovias. Quem sabe fazer metrô com a cloroquina e melhorar a vida de quem precisa de transporte público nas capitais.

Podia construir escolas de cloroquina. Hospitais. Incinerar tudo e, com as cinzas, moldar novos professores, médicos, moradias populares, universidades, livros, respiradores, cédulas de R$ 200, acesso à cultura, saneamento básico, polícia que não mata. Vai ver que, se enfileirar 1,8 milhões de comprimidos, dá até para reimprimir a Constituição.

E, se o governo começar a achar problema, basta encontrar alguém que tope, e então armar a venda de todas as toneladas encalhadas. Com o dinheiro arrecadado, a gente compra vacina pra todos os brasileiros, e ninguém mais vai precisar morrer de Covid.

A única parte difícil é que haja um país tão otário quanto o nosso. Se não surgirem interessados, quem sabe dá pra inventar uma nação nova no mapa, todinha feita à base de caixinhas de cloroquina.