A língua da morte

Marcella Franco

Sei que Santo Expedito cuida das coisas urgentes. Tinha um amigo que colecionava santinhos com versões variadas das cores das roupas do santo, da proporção do corvo que ele esmaga com a sandália, e da paisagem atrás da cena. E este amigo explicou que, por mais que na prática fizesse Expedito de baralho, acreditava que algum poder emanava daquele bolo de imagens que ele carregava na bolsa.

Das outras santas, cujos nomes estampam as velas de sétimo dia na prateleira do mercadinho perto de casa, eu não sei nada sobre a área de atuação. Não sei exatamente quem ajudam. E, se de fato ajudam alguém, eu provavelmente seria a última da fila dos assistidos, porque não tenho fé em coisa alguma.

Fácil apelar agora. Dizem que quando o avião está caindo todo mundo sabe rezar um Pai Nosso. Depois de enterrar minha gata, eu agora quero acender uma vela. Fiz um altarzinho em cima da mesa de trabalho, tem foto, lembranças dela, e penso que devo iluminar tudo por sete dias, queimando. Escolho a vela do anjo da guarda, parece neutra. Animais certamente têm quem olhe por eles.

Também decidi cuidar de plantas, na tentativa de lidar com o desespero da ausência. Comprei duas orquídeas, que sei que vou matar muito em breve –não sei nada de santos, de botânica sei menos ainda. Botei lírios num vaso, iguais aos que entreguei no consultório da veterinária, para agradecer por tudo. O perfume é bom e distrai.

Uma aula de tricô online está agendada para quinta-feira. Quem sabe produzir cachecóis e meias para bebês que nunca vou gerar possa acalmar a saudade. Retomei, ainda, os livros de colorir, embora não domine qualquer técnica artística nem possua instrumentos adequados, e insista em preencher as formas das páginas com lápis de cor velhos, emprestados do quarto do meu filho.

Ele se esqueceu de me dizer alguma coisa bonita no dia da morte da gata. Ligou só para perguntar se podia jogar videogame àquela hora. Criança é assim mesmo, minha mãe defendeu. Minha avó não me defendia das coisas nunca. Um dia eu roubei uma calculadora da minha prima. Ela convocou todos à sala de jantar e expôs minha contravenção, me fazendo pedir desculpas publicamente.

Eu acho que a gente devia ser mais exposto às coisas desde cedo. Não à humilhação pela cleptomania, o psicólogo cuidava dessa parte. Mas que era importante, por exemplo, a gente ter mais contato com o inevitável da morte. Por que é que nunca me levaram a um velório antes de eu ter idade para dirigir um carro? Me esconderam todos os enterros, cremações, choros diante da má notícia.

E, na ideia de me poupar da dor, deixaram de me ensinar a lidar com ela. Tenho 40 anos. A gata não seria a única morta duma existência assim tão longa, obviamente. Mas, porque meus mortos só me foram autorizados depois de adulta, acho que vivo mal cada nova perda. Não aprendi o luto, e então me obceco com plantas, tricô, livros de colorir.

Há livros e filmes sobre a morte, feitos especialmente para as crianças. Assisti um, outro dia, do pianista que cai, distraído, no bueiro aberto na rua. É lindo, como são lindas as histórias que recebo frequentemente, pelo trabalho, contadas pela literatura infanto-juvenil.

Mas e se, além de lindas, elas também desistissem um pouco de investigar e adivinhar o que acontece com quem se foi, e retratassem o que já se sabe, pela prática, que acontece com quem ficou?

Deve ter desenhos que falam abertamente da ausência e da saudade. Do vazio que se abre quando um ser querido desaparece para sempre. Mas acho que precisamos de mais. De coisas, encontros, aulas, qualquer oportunidade que fale para as crianças sobre o universal “nunca mais”.

Virei uma adulta inábil diante da morte. E, ao mesmo, eu sou tão feita dela. Meu peito e minha carne, tecidos de perdas. Meus muitos mortos tentam, a cada vez que se apresentam, me ensinar um pouco a maior lição da vida. Aquela que fala de solidão, força e impermanência.

Eu juro que tento assimilar tudo. E sigo. Fazendo as lições e acumulando saudades. De vez em quando ainda compro velas de sétimo dia e orquídeas que não sei usar ou manter. Aos tropeços, estudo. É parecido com quando a gente resolve aprender outro idioma depois de velho. É mais difícil, mas não impossível.

Um dia, vou me tornar fluente na língua da morte.