Pra te lembrar de não morrer
Quando a Erika morreu, eu tinha preparado para ela uma carta que falava sobre como eu tinha descoberto que o Neutrox era o melhor condicionador do mundo. Aquele, que a gente usava quando era pequena e que, de uma hora para outra, alguém decidiu que não era mais eficiente e que seria preciso gastar centenas de reais por um creme para passar no cabelo todo dia.
Eu queria contar para ela que agora eu conhecia o segredo, e tinha pensado em uma maneira muito inteligente de, puxando por este assunto, lembrá-la de como a sua ajuda tinha sido fundamental quando me deram aquele diagnóstico errado no final de 2016.
Porque eu até pensava que ia morrer, com os meus pais ali chorando na sala no dia de Natal, mas a única coisa que efetivamente me preocupava era o meu cabelo. Eu não queria ficar careca. E a Erika, que, diferentemente de mim, tinha recebido um diagnóstico certo, já sabia que perder os cabelos não significava nada. Ela me ensinou, paciente, que ter uma doença grave ajudava no processo de entender a vida e o quanto cada um se importa com ela.
A gente se falava muito naquela época. Escrevia, na verdade, porque hoje, além de pagar caro nos condicionadores, ninguém mais se fala, só troca mensagem. E a Erika me mandou muitas conversas escritas nos meses dos diagnósticos.
E eu? Bom, eu, querendo ser perfeita, e escrever a carta perfeita, querendo sempre ser a melhor no mundo, guardei o texto que escrevi para a Erika quando soube que ela estava de volta no hospital. Queria mexer mais um pouquinho, só, trocar umas coisinhas.
Dou aulas de escrita e, no meu curso, faço os alunos escreverem com tempo contado, e é sempre bem pouco tempo, bem menos do que eles gostariam. É para aprender a entregar as coisas, eu explico, para entender que um texto está pronto na hora que tem que estar. Mas a minha carta ficou pronta e eu não enviei.
Não disse à minha amiga tudo que ela merecia ter escutado.
Que ela era grande. Que não tinha sido um esforço perdido me mostrar que perder os cabelos, perder sobrancelhas, cílios, perder um peito, os dois, a carne, a Erika me mostrou que o que importava mesmo era o foco em não perder o fôlego. Em continuar pedalando. Seguir em frente aos pedaços, mas sem mudar de direção.
Junto com a carta, eu ia mandar um quebra-cabeças que comprei, uma fotografia de um templo na Tailândia. É complicadíssimo de montar, as 500 peças são todas iguais, mas eu sabia que a Erika ia dar conta. Ela tinha a Tailândia na memória, deu o nome do país para a cachorra, e o que são 500 peças iguais para uma mulher que sabe juntar os pedaços todos?
Toda mulher de bicicleta que agora eu vejo na rua eu acho que é ela. E eu quase paro toda ciclista para dizer olha, está aqui a carta, eu agora ando com ela no bolso para o caso de esbarrar em você no caminho, veja que sorte a minha, poder reparar o que eu não consegui fazer antes.
Acrescentei um parágrafo à carta esses dias, imprimi de novo. Precisava contar à Erika que comecei a nadar há três semanas, e que me sinto um tronco de árvore sendo levado pela enxurrada quando me comparo aos outros alunos das raias ao lado.
Ela ia mandar eu parar de me comparar. Porque, nessas de querer ser perfeita, ela repetiria, eu deixo sempre passar tudo que de fato importa. No final da carta, eu explicava: comecei a nadar para enfrentar a dor daquele mesmo problema de que falávamos em 2016. Aqueles nossos diagnósticos, e o dela tão preciso que por pouco não acerta também a hora em que ela, a Erika, morreria.
Agora, eu nado para esquecer que dói. E nado para me lembrar de você, para ser melhor, para aprender a não esperar pela palavra perfeita quando nada na vida tem tanta precisão, nem mesmo a sentença dos seus médicos. Nadando afobada, um tronco oco na água corrente, eu tiro a cara da água para respirar e me lembrar de não morrer.
Eu podia ter pedido isso a você: te lembrar de não morrer. Faltou coragem.