É complicado lidar com a Folha

Essa semana, o presidente da República Jair Bolsonaro chamou a Folha de “panfleto ordinário”. Disse que, por aqui, a gente desce “às profundezas do esgoto” para atender às “causas dos canalhas”. Já são dez meses de governo, e essa não é a primeira vez que ele faz isso, de distribuir chutes e tapas quando o jornal publica alguma coisa de que ele não gosta. E eu preciso admitir algo importante aqui: eu acho que entendo o presidente.

Deve ser muito, mas muito difícil mesmo, ter que lidar com a Folha no dia a dia. Abrir todo dia o site e a edição impressa e ler, lá, tanta coisa relevante e bem apurada, tanta notícia importante. Tá certo que, vez ou outra, quando o assunto da reportagem é a gente mesmo – e a gente mesmo fazendo asneira – pode ser realmente embaraçoso, mas, no geral, o inconveniente vem mesmo da eficiência ali escancarada cotidianamente.

Não seria tão mais simples ter circulando como maior jornal do país uma gazeta incompetente, cheia de receita de bolo? Receber para um café da manhã oficial uma equipe mal-educada, que falasse de boca cheia espalhando farelo de torrada por todo o tapete do Palácio da Alvorada?

Eu acho que entendo o presidente, porque passo pela mesma angústia diariamente: como é possível tanta perícia? E, não porque tenha meu nome envolvido direta ou indiretamente em matérias escandalosas, mas porque me afeta o fato de que os profissionais da casa sejam tão qualificados, eu passo horas e horas sofrendo para conseguir sugerir uma pauta que ainda não tenha sido prontamente publicada, ou para criar um texto de opinião que ainda não tenha sido brilhantemente escrito por outro colunista.

Se ter a Folha de olho na sua gestão é complicado, Messias, você não tem ideia do quanto é difícil trabalhar aqui dentro.

Pegue Antonio Prata, por exemplo. Quando éramos todos ainda muito jovens, Pratinha fazia parte do grupo de camaradas mais próximos de um namorado que tive. Hoje, adulto e de barba, é casado com uma amiga querida, e, com tudo isso, quase dá para achar que Antonio Prata é uma pessoa normal como todas as outras. Mas, não.

Trata-se de um gênio que sabe sempre o que escrever, em qual momento escrever, e o melhor meio de fazê-lo. Imbatível, claramente. Você tem ideia, senhor Presidente, de como é complicado ser blogueira em um jornal em que Antonio Prata é colunista? Deixa a humilhação de qualquer discurso-relâmpago em Davos no chinelo.

Focada que sou nas questões femininas, talvez o senhor saiba, vai que a Michele de vez em quando me lê, me vejo frequentemente querendo abordar nos meus textos o tema do envelhecimento, e sobre como a sociedade pode ser preconceituosa com mulheres maduras (se elas forem casadas com presidentes mais jovens, então, nem se fala).

Daí então construo todo um argumento bem sólido a respeito do etarismo, escrevo centenas de linhas, e, quando abro a edição do dia, antes de dar enter no meu próprio texto, dou de cara com uma explicação brilhante da Mirian Goldenberg sobre o tema. Caramba, sabe. A gente fica achando que manja de alguma coisa, e surge alguém que prova que ainda é preciso comer muito sucrilhos pra chegar perto de um parágrafo daqueles.

Até mesmo aqueles funcionários da mesma firma com quem no passado já houve alguma rusga, e estou ciente de que vossa excelência já passou por isso, saiba que às vezes dá uma raiva porque é preciso concordar com alguma boa ideia que eles têm. Veja meu caso, por exemplo, com Ruy Castro, que outro dia publicou uma coluna intitulada “A porra da árvore”, e eu tive não só que fazer que “sim” com a cabeça várias vezes, mas também precisei rir de algumas boas passagens. Pra ficar mais ilustrativo, é como se o senhor, hoje, se visse concordando com algum áudio do Bebianno, capitão. Pense.

Por isso, presidente, gostaria de repetir aqui que, sim, eu entendo sua situação. A vontade de espernear a cada manchete, a cada caderno aberto, o desespero diante da edição na banca ou na mesa do café, logo pela manhã. Essa Folha de S.Paulo é mesmo um 7 x 1 atrás do outro. O que nos consola é saber que, vez ou outra, ainda dá para acertar um pouco. É o caso desse texto aqui, que até onde eu sei, ninguém ainda tinha tido a ideia de fazer. Melhor eu me apressar pra publicar.