Eu, que sou melhor que os outros

Estela May/Folhapress
Marcella Franco

A casa do muro preto passou mais de ano com placa de “aluga-se”. Ninguém se interessou em visitá-la junto com um dos corretores que às vezes apareciam para abrir as janelas e deixar o espaço ventilar um pouco. Talvez a pintura escura medonha assustasse os potenciais inquilinos. A varanda parece ótima, e a garagem espaçosa deu pra ver quando retiraram a última mudança.

Mas aí teve um dia em que chovia muito, e mesmo assim um rapaz subiu as escadas laterais cobrindo a cabeça com uma pasta verde de documentos. Achei meio estúpido usar documentos para evitar molhar o cabelo. E ele saiu de lá meia hora depois, bateu o cotovelo com o cotovelo da moça que destrancou a casa para ele ver, e uma semana depois encostou ali um caminhão de carreto.

Entre os novos moradores tem um cachorro cinza e uma mulher que gosta de tomar sol enquanto lê. E que parece não se incomodar com a pintura preta. No fim de semana, apareceu uma outra, talvez mais jovem, ou só mais animada, não deu pra saber ao certo. Ela tocou a campainha da casa vizinha onde todo mundo sabe que moram um pai, uma mãe, uma garota deficiente mental e um homem quase jovem que grita com todos eles.

O homem que grita desceu para abrir o portão, e no meio do caminho tirou a camisa. Ficou só de bermuda para dar as boas-vindas à moça animada, e falar que este é um bairro excelente onde na rua de cima tem feira toda quarta, e quando venta caem flores amarelas no chão. Fica uma beleza, eu ouvi o homem dizendo, aqui do meu apartamento do outro lado da rua.

Ele mostrava o sovaco enquanto falava das facilidades de Perdizes. Ela ria, e passava a mão no cabelo. Antes de dizer tchau, ele mostrou que ama muito a irmã deficiente e deu um beijo e um abraço nela, só para a moça animada ver aquilo e achar bonito.

Quando a vizinha já tinha voltado para a casa preta, o homem vestiu a camisa de volta e foi até o carro dele pegar qualquer coisa lá dentro. Voltou rápido, e passou sem parar pela irmã, que tinha ficado esperando sentada no último degrau da escada. Deu pra ouvir ele em seguida gritar com a mãe, antes que eu resolvesse que já estava bom de observar os outros pela janela.

Sempre usei como desculpa a profissão quando alguém me acusava de prestar muita atenção na vida alheia. O jornalismo parecia uma boa justificativa. A gente tem que estar atento o tempo todo, vai que aparece alguma notícia. Sou escritora, as observações me inspiram.

Mas sei que, mesmo se eu fosse economista e trabalhasse na Bolsa, ia gostar de xeretar as coisas dos outros.

Acho que, no fundo, todo mundo é meio assim, também. Um tanto bisbilhoteiro. A gente tem gosto em tomar conta do que os outros fazem porque não se orgulha do conteúdo da nossa própria vida, e procura lá fora as coisas que gostaria de ter aqui dentro. Mas, também porque, intimamente, a gente se acha sempre melhor que os outros, mesmo dizendo que os outros são uns bostas.

O homem recebe a vizinha nova sem camisa e isso me parece um convite ao julgamento. Devo achar que, no lugar dele, eu faria diferente – muito melhor, provavelmente. Um monte de gente fura a quarentena nas praias e nos bares, todo mundo chama de absurdo, mas acho que na verdade a gente adora.

Porque, quando o erro dos outros é mais visível, os nossos deslizes tendem a passar despercebidos. A faxineira que tem vindo uma vez por semana. Os amigos que apareceram uma única vez, só mesmo pra dar oi, porque eles também têm feito o isolamento direitinho.

Queria eu ver se o vizinho estivesse na janela nos dias em que não tive paciência nenhuma com meu filho durante a lição de casa. Ou nas inúmeras vezes em que, deitada no sofá sem fazer nada, não atendi o telefonema de alguém que eu amo, dizendo que estava ocupada.

O segredo da iluminação de caráter deve morar em perceber que a moça está feliz tomando sol com o cachorro cinza, mas não fazer força para enxergar de longe o nome do livro que ela está lendo. Por mais que eu goste de literatura. Por mais que eu seja jornalista. Eu quero ser uma pessoa melhor e vou trabalhar por isso. Só não sei se consigo parar de detestar aquela pintura preta.